IA e Advocacia: Entre a Inovação e a Responsabilidade Ética

Os impactos de uma nova regulamentação de IA no Brasil e Reino Unido

O debate contemporâneo sobre o uso da inteligência artificial (IA) na prática jurídica tem deixado de ser uma questão de futuro para se tornar um imperativo do presente. Escritórios de advocacia, órgãos reguladores e o próprio Judiciário já convivem com o desafio de integrar ferramentas tecnológicas à rotina forense sem comprometer a ética, a confiança pública e a qualidade da prestação jurisdicional.


A partir das recentes regulamentações emitidas por órgãos como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – Resolução nº 615/2025 – e pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – Recomendação nº 001/2024 –, evidencia-se um ponto em comum: a IA deve ser tratada como ferramenta auxiliar, jamais como substituta do raciocínio jurídico humano. Não se admite, por exemplo, que decisões judiciais sejam 100% automatizadas, nem que petições baseadas em alucinações de IA – as chamadas AI hallucinations – sejam toleradas como fruto da pressa ou da inexperiência.


A lição do caso britânico Ayinde v. London Borough of Haringey (2025) é marcante: advogados que apresentaram casos falsos gerados por IA foram pessoalmente responsabilizados pelos custos processuais desperdiçados. Já em Vanguard Construction v. 400 Times Square (NY, 2025), o Judiciário foi enfático ao censurar acusações infundadas de uso indevido de IA, ressaltando que alegações sérias exigem provas sérias — e o uso imprudente do tema pode ser tão danoso quanto o erro que se deseja coibir.


Essa realidade impõe uma nova maturidade regulatória e institucional. Não basta adotar ferramentas de IA para parecer moderno; é preciso compreender seus limites técnicos, riscos jurídicos e consequências reputacionais.

A IA pode reduzir custos, agilizar procedimentos, ampliar o acesso à justiça e até auxiliar na predição de riscos processuais. Mas ela também pode gerar erros massivos, enviesar decisões ou comprometer o sigilo profissional se usada de modo irresponsável.


No campo prático, os escritórios de advocacia são chamados a equilibrar inovação com responsabilidade. Isso significa:


• Estabelecer protocolos de verificação humana de todas as peças geradas com apoio de IA;
• Garantir transparência com os clientes sobre como e quando a tecnologia é utilizada;
• Proteger rigorosamente os dados inseridos em sistemas, conforme as exigências da LGPD e da ICO (UK);
• Capacitar suas equipes para que compreendam os fundamentos e as limitações da IA, em vez de terceirizar a confiança a sistemas opacos.

Nesse contexto, o recente reconhecimento, no Reino Unido, do primeiro escritório jurídico autorizado a operar com base em inteligência artificial — a Garfield.Law Ltd, especializado na recuperação de créditos de pequenas causas perante os juizados de pequenas causas — marca um precedente regulatório importante.

A autorização concedida pela Solicitors Regulation Authority (SRA) evidencia uma abertura institucional à inovação, desde que acompanhada de salvaguardas quanto à supervisão humana, combate às chamadas “alucinações” e proteção de dados. Esse movimento sinaliza que a regulamentação da IA no Direito ultrapassará os limites do apoio técnico e alcançará debates mais profundos sobre autonomia, responsabilidade profissional e reconfiguração da atuação jurídica em todo o mundo.


Em suma, a advocacia do século XXI não é apenas mais tecnológica — ela precisa ser eticamente programada. A confiança do público no sistema jurídico depende não só da capacidade dos advogados de entregar soluções eficazes, mas também de manter integridade no uso dos meios que utilizam para atingi-las.


Como sintetizou Richard Susskind: “Clientes não querem advogados — querem seus problemas resolvidos.” Cabe à advocacia contemporânea refletir, com responsabilidade e critério, se as ferramentas de inteligência artificial estão sendo empregadas para oferecer soluções efetivas ou se, ao contrário, têm contribuído para agravar a complexidade das demandas. O futuro da profissão jurídica será moldado não apenas pela inovação tecnológica, mas pela maturidade ética com que seus profissionais decidirão integrar essas inovações à prática forense.

Dr. Felipe Issa
Advogado brasileiro, especialista em Direito Processual Civil, bacharel e Mestre em Direito na Inglaterra e Sócio da Issa Merhi Advocacia.